domingo, 28 de abril de 2013

Judiado da lida

JUDIADO DA LIDA

Entendi nos olhos do bicho
Porque ele não queria estrada
Quem tem a vida judiada
Não sente alegria à toa
E por mais que ele remoa
E tente esquecer os puaços
São os estalos dos relhaços
Que tinem na sua memória
E trazem, pro hoje, sua história
Das geadas e dos mormaços

Foram tempos numa era bruta
Encharcado de suor
Fazendo o seu melhor
Na espera da recompensa
Mas, pra muitos, bicho não pensa
Não sofre... não se afeiçoa
E é esse tipo de pessoa
Que age com mais maldade
E com tal brutalidade
Que o bicho desacorçoa

Depois de uma lida bruta
Mau tratado e sem carinho
O animal se vê sozinho
Se esquivando pela invernada
Na esperança que, na madrugada,
Venham lhe fazer companhia
Numa noite aberta e fria
Outros cavalos da estância
E juntos sufoquem a ânsia
Destas vidas tão vazias

E no raiar de um novo dia
De pronto se atracam na lida
Com o suor, curam a ferida
Troteando rumo ao horizonte
No trocar de orelha, um aponte
Que dias melhores virão
Que o amor e que a razão
Vão prosperar de fato
E o carinho e o bom trato
Em breve, encontrarão

Por isso que hoje, parceiro
Venho lhe fazer um pedido
O bicho, por ter sofrido
Todo tipo de humilhação
Merece uma retratação
Ser um pouco venerado
Compreendido e adulado
Pra se sentir como ser
Pertencente ao teu viver
Um amigo ao teu lado

São cavalos da campanha
De carroças ou canchas-retas
De raça, pangarés ou atletas
Tanto faz a sua vertente
O importante é que a gente
Não se esqueça que esses bichos
Tratados, às vezes, com lixo
Foram e são de grande valia
Provando sua serventia
Nas guerras e nos bolichos

Então, larguei o bicho pro campo
Tirei encilha e o freio
Me senti atorado ao meio
Como que perdendo minha alma
Abri a porteira com calma
E ele, como que pressentindo
Num relincho, quase que rindo
Me agradeceu do seu jeito
E senti, no fundo do peito
A alegria de vê-lo partindo.


Leandro da Silva Melo





sexta-feira, 26 de abril de 2013

Se vai ao macegão

SE VAI AO MACEGÃO

Vou lhes contar de um gaúcho
Que se bandeia por aí
Cria do Piratini
Primeira capital farroupilha
Nas suas ânsias de trilha
Se boleia já no nascente
E nas sombras se faz presente
No despedir da madrugada
E só no meio da caminhada
É que o sol alcança o vivente

Quera de muita valia
Gaudério e trabalhador
Cozinheiro e assador
Amante das cavalgadas
Onde as idéias irmanadas
Repontam no horizonte
E pra nós servem de fonte
Pro manancial da cultura
Onde a tradição mais pura
Ecoa como um reponte

Trabalhou por muito tempo
Na mais variada labuta
Mas hoje a sua conduta
É de um índio aposentado
Por isso, anda mais folgado
Do que rabicho em petiço
Sem horário, nem compromisso
Aproveitando o tempo de agora
Respeitando o que fora outrora
E nunca sendo omisso

Mas ah, meu amigo gaúcho
A idade vem atropelando
E o índio já vai mudando
Sentindo que o negócio é sério
A barriga, virando muro de cemitério
Fazendo sombra pro morto
E o quera ficando torto
Envergando e curvando a espinha
Se contorcendo que nem tainha
Descarregando no porto

E de vez em quando, na caminhada
O índio sente uma pressão
E se vai ao macegão
Descarregar uns pertences
Pois a natureza sempre vence
E pra desocupar ligeiro a trilha
Deixa o calção na virilha
Pra não encostar no fedorento
E entra mar adentro
E do resto se desvencilha

Oigalê, tchê! Índio velho!
Contador de história e causo
Agora, sou eu que pauso
A escrita de tuas andanças
Faltou falar das festanças
No Candeeiro e no Harmonia
Momentos de muita alegria
Contigo e com a patroa
Mas, que na memória ecoa
Com saudade e nostalgia.


Leandro da Silva Melo

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Flor de maçanilha

FLOR DE MAÇANILHA

No velho ritual pampeano
Da erva, da cuia e do mate
Por mais que do assunto se trate
Sempre haverá o que falar
E no nosso chulo linguajar
Relembramos receitas campeiras
Repassadas no chiar das chaleiras
No calor de um fogo de chão
Ou em pé, ao redor do fogão
Nas eternas horas mateadeiras

A erva já tem sua essência
Sabor, cor e aroma
E a tudo isso se soma
Os chás e as ervas do mato
Que ao caminhar pelo campo eu cato
E reservo pra hora apropriada
No momento de nossa mateada
Ao preparar um chimarrão com carinho
Eu adiciono à erva um pouquinho
Do que nos fornece nossa terra amada

Enquanto proseio com o mate
E abraço a cuia morena
O vapor da água quente me acena
E me instiga com o sabor das manhãs
Laranjeira, maçanilha, hortelãs
Boldo, malva, cidreira
Fazem parte das misturas campeiras
No preparo de um bom chimarrão
E a carqueja e o caraguatá também são
Parcerias, especiais de primeira

O aroma das ervas que inalo
Me transporta aos meus tempos de guri
Que ao andar nas trilhas, por aí
Encontrava, emoldurando as coxilhas
Flores de maçanilha
Que catava e nas mãos espremia
E aquele perfume, eu sabia
Levaria para a vida inteira
É a pura essência campeira
Que embriaga minha nostalgia.


Leandro da Silva Melo

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Almas vazias

ALMAS VAZIAS

No cevar do mate quente
Me pesa o cansaço nos ombros
Nessa peleia de quedas e tombos
O tempo me mostra os arreios
Corda, buçal e os freios
Querendo me prensar no brete
Mas a vida passa, não faz frete
Me leva no compasso das horas
Sem delongas e sem demoras
Como o gelo que no fogo derrete

Muitas vezes já pensei
Nas dificuldades da lida
Nas incertezas das idas
Por caminhos desconhecidos
Que nem sempre são floridos
E passamos a duras penas
Branqueando nossas melenas
Tracejando novas rugas
Como que rotas de fuga
Das lágrimas que caem serenas

Mas não há mal que perdure
Nem bem que seja eterno
Aqui se vive o inferno
Pagando no próprio ato
Só existe uma vida de fato
E é nela que o vivente se arca
Sofrendo com o queimor da marca
Colhendo tudo aquilo que plantou
E se foi o mal que semeou
É o demo que vem e acarca

Por isso que vivo tranquilo
Com paz no coração
Às vezes, com indignação
De ver gente caborteira
Cínica e sorrateira
Tirando vantagem de fatos
Achando impunes seus atos
Mas aguardo a hora certa
Em que a verdade será descoberta
E não sobrarão nem os ratos

Tenho pena dessa gente
Também um pouco de nojo
Se usassem todo seu arrojo
Pra fazer coisas de bem
Com certeza, em percentual de cem
Não estariam pagando seus feitos
Doença, cegueira, defeitos
Nem passariam por perto
Mas a realidade é que, de certo
Pouco falta pra não levantarem dos leitos

Não que eu esteja agourando
Mas também não peço por eles
Se depender dos meus afazeres
Coitados... estão ralados
Do jeito que são bitolados
Vão se engasgar com a própria língua
E vão morrer na míngua
Achando que são felizes
Mas a foice já pegou nas raízes
E a ferida tá virando uma íngua

Por estas e outras que reflito
De tudo que já passei na vida
Conquistas e derrotas sofridas
Tudo foi um aprendizado
E hoje, tenho ao meu lado
Algo que ninguém me tira
Nem na alegria, nem na ira
É uma coisa chamada bom-senso
Pois paro, respiro e penso
Ainda tem volta, pois o mundo gira.


Leandro da Silva Melo

Semeando

SEMEANDO

Uma vez perguntaram ao vivente
Porque semear de três grãos
E não surpreso com a indagação
Passou a explicar com clareza
Que esta é a nossa natureza
De três em três, só vingam alguns
E, às vezes, destes, nenhum
Todos apodrecem na terra
E o começo, por ali se encerra
Na covardia de cada um

Não basta estar tapado de terra
Se sentindo coberto e seguro
O chão pode ser muito duro
E a saída é sempre por cima
Se um deles se anima
Os outros se escoram no toco
Se fingem de besta e de louco
Achando que o tempo não passa
Não servem pra sustentar a raça
E morrem secos no oco

E foi com esta explicação
Que passei a entender alguns fatos
A diferença entre amigos e ratos
Fica latente desta forma
Que enquanto a água está morna
O medíocre por ali se sustenta
Mas quando a água esquenta
É que se conhece o verdadeiro parceiro
Enquanto o covarde pula primeiro
O amigo, no braço, te aguenta

Muitos são os discursos
Poucos são os feitos
E a vida é desse jeito
Muito interesse, poucas verdades
Um festival de vaidades
Um fingimento completo
E se tu quer ser mais direto
Indo pra decidir o assunto
Os “puxas” já chegam junto
E tu não consegue um papo reto

Vou tocando minha lida
Semeando, dia após dia
Vivendo com a nostalgia
E buscando um melhor futuro
Tranquilo, firme e seguro
Me vejo festejando os amigos
Separando o joio do trigo
Irrigando a semente brotada
Capinando e mantendo-a adubada
Só assim, ser feliz eu consigo.


Leandro da Silva Melo




sexta-feira, 12 de abril de 2013

Do pealo ao corcoveio

DO PEALO AO CORCOVEIO

Não sei se falo direto
Ou se uso de entrelinha
Mas me bateu a passarinha
Estragando a comida do cocho
Fiquei que nem touro mocho
Empurrando a cancela com a testa
Que o improviso, às vezes, é o que resta
Pro animal acuado no brete
De peito e de pata se mete
Fazendo porta do que era só fresta

E dali ganhei o mato num upa
Sentindo a ardência do talho
No estalar de folha e de galho
Um silêncio que ensurdece e enoja
De lembrar que, pelas costas, a corja
Decidiu me eliminar num puaço
Sem ao menos me propiciar um vistaço
Que com certeza lhes poriam respeito
E decidiram, de fácil, o jeito
Na surdina, pelas costas, no baço

Mas ah, tempo velho bagual
O mundo dá volta e não pára
Senti a maldade de cara
No cordeiro, o ranço do lobo
E pra mim, que nunca fui bobo
Não chegou a me fazer surpresa
Pois a incompetência e a fraqueza
Caminhavam de par há algum tempo
E pra tona vieram neste momento
Sem cerimônia, nem sutileza

Não vou dizer que não dói
Mas ao mesmo tempo me amarga
Saber que carreguei tanta carga
Pra aqueles mesmos se darem bem
E hoje, o que pra mim vem
É um pealo e uma faca no lombo
Mas pro índio que já levou tombo
E levantou sacudindo a poeira
O que esperar dessa gente rampeira?
Só o que tem na cloaca do pombo

E o tempo é a melhor resposta
Não saí, um segundo da linha
A melhor resposta é a minha
E vai ser dada no tempo certo
E os amigos que estiverem por perto
Vão ver o tamanho do estouro
Não é à toa que, de signo, sou touro
Tenho os pés bem firmes no chão
Mas, à frente, fixo sempre a visão
Pois na vida já não sou mais calouro.


Leandro da Silva Melo